Participei três vezes, como palestrante, do festival Pint of Science Brasil – em duas delas, como membro de painéis compostos por jornalistas, falando sobre jornalismo científico e de saúde (na terceira, falei sobre ficção científica, um tema muito mais agradável).
Na primeira das participações ao lado de colegas da imprensa, ouvi de uma mulher na plateia que, durante um tratamento oncológico, o médico a havia proibido de ler jornal – para que ela não ficasse ansiosa com o noticiário contínuo, ininterrupto, a respeito de novas terapias, tratamentos “promissores”, etc. Na segunda, opinei que a imprensa generalista – aquela que, como os jornais tradicionais, cobre de tudo, de golpe de Estado a estreia de cinema – deveria parar de noticiar resultados de estudos em camundongos. Os colegas olharam para mim como se eu tivesse defendido ateísmo no Vaticano.
Minha razão era simples: menos de 10% dos resultados de pesquisa sobre câncer obtidos em animais acabam resultado em tratamentos para a doença em humanos. Em termos de tratamentos de saúde em geral, a taxa de translação – termo técnico para a conversão de um resultado científico em tecnologia viável – de pesquisas em animais para humanos é ainda menor: por volta de 5%.
Esse afunilamento é parte do processo científico: hipóteses surgem e são testadas seguidas vezes, de forma cada vez mais rigorosa, até que apenas aquelas que têm uma boa chance de corresponder à realidade sobrevivem. Noticiar as que mal saíram da linha de largada como “promissoras” ou “novas esperanças” é desnecessário e cruel – eu chamaria até de má-fé, mas isso é um juízo muito particular meu.
Valor-notícia
O jornalismo de saúde (e não só ele) sempre viveu a dificuldade em equilibrar-se entre o interessante e o relevante: nem tudo o que tem potencial de chamar a atenção do público realmente importa, e nem tudo que realmente importa tem o potencial de chamar a atenção do público – ainda mais, dadas as restrições de espaço, formato, linguagem etc. da imprensa.
A pesquisa sobre newsworthiness – “valor como notícia”, ou “valor-notícia” – em jornalismo de saúde sugere que as soluções encontradas para o problema estão bem longe de ser ótimas.
De um artigo publicado no BMJ em 2002: “a imprensa subnotifica os ensaios randomizados, enfatiza más notícias de estudos observacionais”. Este da PLoS ONE, 2017: “muitas descobertas biomédicas relatadas na imprensa são desmentidas por estudos subsequentes. Isso se deve, em parte, ao fato de que a imprensa preferencialmente cobre estudos iniciais ‘positivos’”. E este outro do BMJ, de 2014, que avaliou tanto notícias publicadas na mídia quanto os comunicados à imprensa emitidos por institutos de pesquisa e universidades e encontrou, em ambos, “conselhos para mudança de comportamento, declarações causais extraídas de pesquisa correlacional e inferências para humanos tiradas de pesquisas com animais que vão além dos presentes nos artigos revisados por pares”.
Resumindo, o jornalismo de saúde tende a divulgar boas notícias (do tipo “aveia previne Alzheimer”) baseadas em trabalhos que têm boa chance de acabar sendo desmentidos depois (e, de acordo com o estudo da PLoS ONE, menos de 1% dos desmentidos são noticiados); dá destaque desproporcional a más notícias baseadas em estudos observacionais (do tipo “café sem açúcar associado a câncer”), sendo que pesquisas observacionais não servem para estabelecer relações de causa e efeito; e tira, dos estudos divulgados, conclusões muito mais fortes do que a ciência publicada pode sustentar.
Outros estudos registram a tendência da imprensa de reportar material com “implicações de estilo de vida” e apontam para a explosão no uso de pré-prints – artigos preliminares, ainda não revisados – como fontes para material jornalístico.
No frigir dos ovos, há uma chance mais do que razoável de que, num dia qualquer, as editorias de saúde e bem-estar dos grandes jornais, das redes de TV e das revistas em geral estejam dando às pessoas conselhos – sobre o que comer, o que beber, o que evitar, o que fazer, o que tomar – baseados em ciência frágil, exagerada ou distorcida.
É importante notar que nada disso é responsabilidade exclusiva da mídia: é muito fácil criar uma dicotomia artificial entre a Academia “pura” e a Imprensa “vulgar”, mas o estudo sobre a influência dos press releases institucionais sobre o exagero midiático é contundente: na maioria das vezes em que o noticiário apresenta uma conclusão científica do modo exagerado, a distorção já estava presente no comunicado institucional.
Caindo na rede
Isso tudo pode parecer pior do que realmente é – comer aveia talvez não evite doenças neurodegenerartivas, mas também não vai matar ninguém –, mas a ênfase em noticiar resultados observacionais de forma alarmista tem o potencial de produzir repercussões indesejáveis, inclusive sobre o fazer científico.
Não é difícil encontrar associações espúrias entre dois fatores aleatórios quaisquer: é possível desenhar gráficos associando (indevidamente) a elevação do número de casos de autismo diagnosticados nos Estados Unidos tanto ao aumento no uso do herbicida glifosato quanto ao crescimento das vendas de produtos orgânicos, por exemplo.
Essa facilidade, somada ao apetite da mídia por alertas sanitários e à pressão acadêmica por “publicar ou perecer”, gera uma verdadeira indústria de “causas em busca de efeitos” que polui a literatura científica – quem se lembra da década perdida com alarmismo fútil em torno da suposta ligação entre telefones celulares e câncer de cérebro? – e acaba diluindo a preocupação do público com fatores de risco realmente comprovados e relevantes, como o tabaco. O caso do leite, coberto recentemente pelo colunista Mauro Proença, é clássico.
A situação se agrava quando incluímos, no ecossistema de mídia, as redes sociais e os aplicativos de mensagem, ambientes em que a tensão entre busca por audiência e responsabilidade jornalística, muitas vezes, simplesmente não existe: audiência é tudo, conflitos de interesse nem sequer são vistos como problema; situações que para o jornalista sério podem se manifestar como desafios e dilemas, para o influencer talvez não passem de oportunidades. Nesse ambiente, apontar supostos “riscos”, de graça, para em seguida oferecer “segurança”, a preços módicos, é um modelo competitivo de negócio.
Em se tratando de comunicação institucional – quando a universidade, instituto de pesquisa ou o próprio cientista se dirigem ao público – é necessário distinguir entre dois propósitos que, se não são antagônicos por natureza, também não são necessariamente congruentes: “emplacar a matéria” (isto é, chamar a atenção das pessoas, ganhar espaço na mídia) e comunicar a ciência (traduzi-la e apresentá-la de forma agradável, correta, honesta e compreensível aos não-especialistas).
Há situações ideais em que ambos os objetivos caminham juntos, e o sucesso em um deles é também sucesso no outro. Mas quando há conflito, é preciso honestidade para reconhecê-lo – e para decidir, conscientemente, qual o propósito mais importante. Tudo pode ser traduzido e comunicado, mas nem tudo precisa ser noticiado.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)